O advogado Davi Pires, do Ministério da Justiça, fala sobre os critérios de classificação indicativa e critica a “inércia” da TV brasileira em relação ao conteúdo produzido e veiculado para as crianças.

Davi Pires é diretor-adjunto do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça (Dejus), responsável pela classificação indicativa que determina a faixa etária adequada para audiência dos filmes, programas de TV e videogames que circulam no Brasil. Um dispositivo que auxilia os pais na hora de escolher que produtos audiovisuais podem ser consumidos pelos filhos. Ele chegou ao órgão em 2007, um mês depois da publicação da portaria que obriga a exibição da classificação na vinheta de abertura de todos os programas de televisão aberta. Acompanhou o início do processo, cheio de protestos e acusações de censura, a naturalização da regra e o aprimoramento do método. O próximo passo é fazer com que os pais usem efetivamente a classificação no dia-a-dia. “Os pais tem que procurar saber a classificação indicativa. Eles podem segui-las ou não, mas é importante que tenham parâmetro”, diz Davi em entrevista por telefone ao O POVO. Na entrevista, ele explica como funciona o processo de classificação, reitera o papel dos pais na decisão final e dá sua versão para a migração das crianças da TV aberta para a fechada.

O POVO – O sistema brasileiro, onde a TV é uma concessão pública, é semelhante ao de outros países? Que obrigações as TVs têm por conta disso?

Davi Pires – A grande maioria segue esse modelo porque o espaço de radiodifusão é limitado, então é melhor que tenha um uso que sirva a toda sociedade. A maioria das democracias que existem mundo afora tem algum tipo de restrição e regulamentação deste espaço. No Brasil, só temos um tipo de regulamentação que determina a proteção de crianças e adolescentes. Alguns países, por exemplo, tem a proteção à verdade. Quando se faz alguma notícia é obrigação mostrar os dois lados. Não temos essa obrigação no Brasil, não está regulamentado. No caso da classificação indicativa, temos o Estatuto da Criança, que é uma regulamentação prevista pela própria Constituição.

OP – O sistema de classificação indicativa no Brasil é semelhante ao de outros países? Como funciona?

Davi – É muito semelhante à maioria das legislações de proteção, mas em alguns países existem proibições. Aqui, se houver um filme ou programa que trate de crime de ódio ou mesmo de exaltação ao crime ou apologia ao uso da droga, ele terá uma classificação de não recomendado para menores de 18 anos, mas não será proibido. Recentemente, o Ministério Público buscou a proibição do filme A Serbian Film que tem, entre outras cenas de violência sexual, uma de estupro de um recém-nascido, mas não tínhamos instrumento legal para proibir a exibição nem nesse caso bastante grave. Classificamos como não recomendado para menores de 18 anos. Depois, o Ministério Público conseguiu proibi-lo, mas com uma liminar do Poder Judiciário. Fora isso, nosso código de classificação indicativa tem critérios semelhantes ao da maioria dos países. Nossos três grandes critérios são: incidência de cenas de violência, cenas de sexo e nudez e uso de drogas. Temos seis níveis de classificação, outros lugares têm apenas quatro, três. O que difere efetivamente é o órgão que faz essa classificação. Em alguns casos, são associações privadas, em outros, como no nosso, é o poder público.

OP – E quem é que faz essa classificação, como é o processo na prática?

Davi – Temos o Manual de Classificação Indicativa, lançado em 2006, e a partir dele, com a prática, vimos que algumas questões com relação ao método deveriam ser alteradas. Lançamos o Guia Prático da Classificação Indicativa, atualizando o manual. Já estamos no segundo, lançado em abril. A classificação é feita de forma muito objetiva e didática e o guia explicita isso, critério por critério, começando pela violência. Fica bem claro o que é admitido nas seis faixas. Na livre, é admitida a violência fantasiosa, típica de desenhos animados, aquela que não causa sofrimento. Cai uma bigorna em cima do personagem ele vira uma gaitinha, sai caminhando e se recupera. É extremamente fantasiosa, não tem poder de prejudicar, de criar dano na criança. Temos inclusive feito oficinas com o Guia Prático em universidades, escolas, com promotores da infância e adolescência. Semana passada, fizemos uma na MTV e outra na Rede Record. Levamos cenas e avaliamos cada um dos três critérios, fazendo com que quem trabalha diretamente na TV possa ter esse esclarecimento. No departamento, temos uma equipe de cerca de 30 pessoas, 24 trabalham diretamente com a classificação, o resto fica com a parte mais burocrática. No ano passado, classificamos quase 11 mil obras entre TV, cinema e jogos eletrônicos. É um trabalho bastante grande. No caso da TV aberta, há uma autoclassificação. Elas próprias indicam a faixa de classificação e nós verificamos se está correta. Temos um índice de coincidência grande, concordamos em 90% dos casos.

OP – No início da classificação indicativa houve muito protesto, acusação de censura, esse discurso ficou pra trás?

Davi – Está enfraquecido porque temos uma boa relação com as emissoras. Quando verificamos algum problema, antes mesmo de haver decisão mais taxativa do Ministério da Justiça, conseguimos resolver no diálogo. Agora, o mito de censura nunca morre. Em toda oportunidade em que somos chamados a falar, vem essa conversa. Existem critérios estabelecidos, discutidos com a sociedade. Na elaboração do guia, colocamos em discussão novamente. Na censura, era a decisão de uma pessoa só. A classificação é uma indicação para os pais, que podem utilizá-la ou não, de acordo com o que acham mais correto. Para algumas famílias, a violência é algo que deve ser combatido em casa, em outros casos a nudez causa mais constrangimento, o consumo de bebida alcóolica pode ser algo problemático dentro da família. Cada uma tem seus filtros, sabe que valores quer passar para os filhos. Mas ninguém pode definir o melhor entretenimento para eles se não tiver nenhuma informação.

OP – O senhor falou nos filtros de cada família. As diferenças sociais, de escolaridade e maturidade são fatores que relativizam a classificação indicativa? O filtro final deve sempre ser a família?

Davi – Algumas comunidades convivem com violência na porta de casa, por que na televisão não vai ter? Quando se trata de política pública, como o caso da classificação, vamos pela média e estabelecemos padrões de violência admitidos na faixa livre, na de 10, 14, 16 e a violência que só pode ser vista por maior de idade. São cenas que podem exercer alguma influência sobre crianças e adolescentes, mas quem educa as crianças são os pais, eles têm que participar disso. Devem empregar aquela informação para melhor decidir de acordo com seus próprios filtros e com o conhecimento que têm do seu filho.

OP – A classificação livre deixa os pais despreocupados e liberados para, inclusive, deixar que as crianças vejam o programa sozinhas, sem a mediação de um adulto?

Davi – Pode levar para esse encaminhamento, por isso temos cuidado. Por exemplo, a novela da Globo Mulheres de Areia, reapresentada ano passado. Ela é de 1992. Na época, não tínhamos uma classificação como temos hoje. Era uma indicação feita com base na sinopse. Foi considerada livre, mas tinha muitas cenas de violência familiar e uso de bebida alcóolica e de cigarro entremeadas por diálogos, o que dificultava para a emissora cortá-las. Acabamos reclassificando para menores de 12 anos. A sociedade mudou. Não se aceita mais o fumo em vários ambientes públicos

OP – Os canais infantis de TV fechada estão ganhando cada vez mais espaço. Há alguma diferença na classificação indicativa deles para as TVs fechadas? Como o senhor avalia esse fenômeno?

Davi – A diferença na TV aberta é que ela entra na casa da família sem pedir licença. Qualquer um pode ligar e assistir o que está passando. Nesse caso, a classificação indicativa tem vinculação de horário. A classificação livre e para menores de 10 anos pode passar em qualquer horário. O que não é recomendado para menores de 14, a partir das 21h. Para 16, depois das 22h. Para maiores de 18 anos, a partir das 23h. A TV por assinatura também tem a obrigação de exibir o símbolo com a classificação indicativa, mas não tem vinculação de horário. Em primeiro lugar, os pais só vão adquirir os canais que quiserem. Depois têm a possibilidade de bloquear o canal ou a programação naquele horário. Opções que a TV aberta não proporciona. Agora, toda programação é paga por patrocinadores. A questão é a seguinte: se criou uma verdade absoluta que criança não assiste mais TV aberta. Não assiste porque não gosta da programação. Se você pegar estatísticas de TV por assinatura vê índices de audiência muitos mais altos nos canais infantis. Desde que a programação seja feita para ela, as crianças adoram TV. O SBT lançou a novela Carrossel e li na imprensa que já puxou um ponto de cada emissora concorrente e alguns aparelhos foram ligados. Gente que não estava vendo TV naquele horário agora está. A programação feita para criança encontrou seu público na TV aberta. Mas os canais específicos também têm a vantagem de dar o conforto para quem cuida da criança de que ela pode assistir toda a programação sem problemas. A realidade que acabou levando muitas crianças para a TV fechada é que elas gostam da programação feita para elas.

OP –Tem alguma coisa boa passando hoje na TV aberta para crianças?

Davi – Para crianças até 12 anos tem pouca produção nacional, quase nada. Existe a TV Rá-tim-bum, mas não é aberta, o alcance é pequeno. Tem também a programação da TV Brasil, mas sofre do mesmo problema, alcance. Via de regra, não há muito investimento. Se não é recurso público como a TV Cultura e a Brasil, não há interesse das emissoras. A saída da programação infantil da Globo para um canal de assinatura, a TV Gloob, é interessante. Eles lançaram uma novelinha feita com a Conspiração Filmes, Os Detetives do Prédio Azul, mas geralmente as programações são muito repetitivas. Usam muito desenhos que estão no mercado há anos, como He-man, Sheera. Não há produção nova. Tem uma coisa na TV brasileira que é a inércia. Os líderes de audiência acabam dominando e as crianças não chegam a ter acesso a nada feito para elas. Falta informação, provocação dos pais. As crianças normalmente tem um gosto ainda não viciado pelo consumo, ainda em formação.

OP – E a falta de regulamentação da publicidade infantil? Com a explosão dos canais a cabo as crianças estão sendo bombardeadas com propaganda.

Davi – A classificação indicativa para obras de ficção existe porque podem influenciar as crianças e adolescentes. Elas podem imitar ou internalizar conceitos de violência, o sexo pode levar a uma erotização precoce, ver cenas de consumo de droga pode despertar a vontade de experimentar. Tudo isso na ficção prejudica e influência. A propaganda é feita deliberadamente para influenciar mesmo. Os efeitos podem ser maiores, mas não existe previsão legal de uma classificação indicativa de propaganda. Atualmente existe um órgão autorregulador, o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) que poderia fazer esse trabalho e tem feito em alguns casos. Mas temos observado muitas propagandas voltadas para criança e não são elas que têm o dinheiro para comprar. No Código de Defesa do Consumidor, existe a figura “hipossuficiente”, aquele que não tem condições de decidir sobre sua compra. A criança tem essa característica. É relevante que exista essa preocupação. Algumas novelas classificadas como não recomendadas para menores de 12 anos porque têm consumo de bebida alcoólica terminam com um comercial de cerveja. Atrapalha um pouco. Não defenderia a proibição total, mas acho que poderia respeitar certos horários, no caso da TV aberta.

Saiba mais

As próprias emissoras enviam sua classificação para o Dejus que vai avaliar o programa durante 60 dias e confirmar ou não a indicação da rede. No ano passado, dos 5.485 monitoramentos feitos em canais de TV aberta, foram enviadas apenas 48 advertências às emissoras. O Guia Prático de Classificação Indicativa é dividido em três grandes critérios: cenas de violência, sexo e nudez e uso de drogas. Cada uma delas é subdividida nas seis faixas etárias diferentes: livre, maiores de 10 anos, maiores de 14, maiores de 16 e maiores de 18. Em cada uma dessas subdivisões há uma lista do que pode e do que não pode ser visto por cada uma dessas faixas. Como regra geral, à medida que as situações violentas, do universo das drogas e das práticas e discursos sexuais vão ficando mais complexas, mais recorrentes ou mais intensas e impactantes, a classificação vai subindo. Um exemplo, no caso de violência. É livre a violência fantasiosa, a presença de armas sem violência, mortes sem violência e ossadas e esqueletos sem violência. Sobe para maiores de 10 anos, programas que tenham presença de armas com violência, medo/tensão, angústia, ossadas e esqueletos com resquícios de ato de violência, atos criminosos sem violência e linguagem depreciativa.

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